sexta-feira, 22 de abril de 2016

PRESENÇA - Conto de Fabrício Bastos (Santa Cruz, RS)

PRESENÇA

Chegaram antes os sobrinhos e depois os primos, em um rumor de vozes saudosas de tantos assuntos ainda sem tempo; minha prima, hoje uma senhora, como eram as nossas tias de infância. Do fundo do numeroso grupo que aos poucos vencia saudar, a passinhos curtos, surgiu a alva figura de meu tio Raul. Desvencilhei-me dos mais jovens e fui ao seu encontro. Quando apertei as suas mãos ele me olhou de muito longe, uma distância tão grande havia detrás de seus olhos que temi, por um instante, que não me reconhecesse. Mas era o tempo de buscar-me dentro de suas lembranças, aquele frequentador assíduo de sua casa, no meio dos outros primos, todos hoje adultos. Então veio o sorriso que eu pude decifrar, depois de tantas alterações que o tempo fizera em seu rosto, como aquele riso silencioso em que perguntava o que andávamos fazendo por aí, já na idade de incomodar as gurias. O que ele não sabia, imagino, é que a guria que eu gostava de incomodar naquela época era a sua filha, minha prima. Hoje ao lhe ver posso sentir que tudo não só está perdoado, como permanece ignorado.
Mesmo sem possuir o talento da frugalidade, o falar fácil que torna os encontros e principalmente os reencontros bem mais agradáveis, tomei-o pelo braço e nos afastamos dos demais, junto a um balcão de mármore, para melhor escutarmos as nossas vozes carregadas de memórias. Mas elas não vinham. Lembrei que ele também nunca fora alguém de muitos assuntos. E nos contemplamos em silêncio, reféns de alguns canapés e excertos das conversas alheias. Aos poucos fomo-nos juntando aos demais, novamente, e eu o fui perdendo no movimento de tantos ombros amigos. A ponto de não mais entender o meu gesto de ir buscá-lo, destacando-me dos demais. Logo eu que nem era seu afilhado, que nunca fomos tão chegados assim, apesar de frequentarmos a mesma casa durante tanto tempo e a sua presença me trazer tantas lembranças. Severo na educação dos filhos, sabíamos desde pequenos, tratar-se de um homem dedicado a algumas leituras mais profundas e que também amava a música. Tocava piano e cantava em algumas reuniões de amigos e familiares mais próximos. Conhecíamos, também, o Tio Raul pelo pensamento cartesiano, pela economia nas emoções e pelo comedimento no beber, exceção em nossa família. Agora, tendo-o perdido no redemoinho da ceia de Natal a que torno a comparecer após tantos anos, chego a concluir que, se era respeitado por todos, apesar do péssimo palpite para negócios – perdera uma fortuna, sem nem contar com a colaboração de cavalos e mulheres –, talvez jamais tenha sido amado por alguém além de seus próprios filhos. De quem se pode apenas presumir um amor subterrâneo, sem beijos e sem abraços, sem palavras carinhosas, mas algo que se expressava semelhantemente ao respeito. Gestos, como o cuidado que um neto seu tem agora ao lhe acomodar em uma cadeira junto à área externa da casa, longe dos cigarros e das conversas rápidas demais. Onde a brisa e a visão do quintal absorverão seu olhar, que muito raramente se voltará ao lado, apenas para recusar uma bebida ou um prato de torta.

Não somos consangüíneos, ele é viúvo de uma tia minha desaparecida muito jovem. Aquela morte, na época, parece não ter-lhe amassado a gola. Seu caminho até o café, seus horários corretos, sua roupa correta, seus óculos de armações grossas e escuras, seus atributos todos ali mantidos em um traçado descrito em dois mundos, simultaneamente. O das reflexões, onde certamente haveria a descrição completa e devidamente categorizada de todos os fatos da vida, das pessoas que o cercavam e as suas respectivas funções, na família, na sociedade e no universo. Lá deveria residir a explicação perfeita para as suas perdas pessoais e para o insucesso financeiro, ainda que vivesse com certa tranqüilidade apenas de seu trabalho como profissional liberal. E o outro em que convive com seus familiares, dá ordens aos empregados, troca ideias no Café, onde não chega a se sentar, mas consome um cafezinho simples e sem açúcar, que deixa esfriar sobre o balcão, para a inquietação de seus interlocutores. Estes não são muitos: o dono do cartório localizado em frente e que só precisa atravessar a rua, o que faz a cada vez que enxerga alguém que lhe agrade para a “chacrinha”; o meu pai, que fala por todos; o vice-prefeito, cuja única função pública é passar o dia por ali, escutando o que se diz na cidade, e mais alguns outros de menor relevo. Isso naquele tempo em que ainda havia o Café Oásis, por onde eventualmente eu cruzava apressado, cheio de vida, em busca de um picolé. Hoje, apesar de ainda partirem da velha casa da Rua Sete, não sei mais onde lhe poderiam levar seus passinhos de ancião. Mas deve ainda andar pelas duas calçadas que nunca se encontram, uma em que pisa, outra onde ele é uma espécie de vento. Dois cálices próximos ao meu rosto vêm me trazer de volta àquela sala, às margens de um belo gramado que emoldura a piscina azul e retangular. Flutuavam um pouco acima de uns seios fartos, de matrona. Minha prima, que sempre fora a mais esperta e seu sorriso, que mesmo agora apenas querendo me alcançar um dos cálices, fez meu coração bater apreensivo, ansioso. Escolhi o da esquerda e ela recolheu o outro, incitando-me a um brinde. Ergui-o de volta levemente inclinado até encontrar o seu e esbocei o gesto de dizer alguma coisa a título de celebração, o que acabou não se completando. Rimos e bebemos estes e mais outros, falando da nova geração, comparando-os com a nossa. Coisa muito tola de se fazer, pois naquela idade éramos todos segredos para com os adultos e por que aqueles pirralhos também não o seriam? Rimos de novo e ela disse-me olhando por entre as pessoas já bem mais agitadas: – Acho que o pai quer ir embora. Em um movimento onde pude ver toda a extensão de seu braço, hoje mais forte, a mão ainda delicada deixou o cálice sobre o balcão de mármore e saiu deslizando seu vestido colorido, bem de verão. Um pouco do seu perfume ainda me fez sorrir sobre o espumante.

Amparado por um de seus netos no momento de erguer-se da cadeira, Tio Raul se mostrou novamente aquele homem alto e distante. E partindo dos que estavam ao seu lado, iniciou o ritual de despedida, que envolvia também um pouco de conversa com os mais velhos. Meu pai, que não está mais entre nós, nessa hora lhe seria mais um transtorno, pois não esgotaria nunca o assunto, atrasando por uns trinta minutos todo o processo de partida. Como já se calara há cinco anos, os assuntos agora eram curtos e formais, avançando lenta mas firmemente entre os pequenos grupos que se formaram desde a área externa até a sala, onde as pessoas estão mais comprimidas e mais eufóricas. Suas feições, no entanto, não se alteravam. Cumprimentava a todos, tendo atrás de si o sorriso compreensivo de minha prima. As rodinhas se calavam por um instante, e tão logo ele passava tornavam a falar ainda com mais ímpeto. Estavam todos tão envolvidos em sua volúpia natalina, seus afetos de espuma, que não percebiam a natureza do que passava por eles lhes estendendo as mãos frias pela última vez. Desde o ponto junto ao balcão onde eu estava e onde, percebo, estive durante toda a festa, um dos últimos a ser percorridos antes da porta que dá acesso ao restante da casa e à saída, mantinha as mãos secas, prontas para saudá-lo. Já uma frase deixara de prontidão: falava de nos encontrarmos novamente no Natal do ano que vem. Proposta que, se fosse confirmada por ele, ambos estaríamos mentindo. Ou apenas ocultando verdades tácitas, assim como não precisaríamos conversar sobre a maneira como a sua segunda mulher abandonara o casamento tão repentinamente, indo desposar outro jovem como ela em uma longínqua cidade nordestina. Não lhe perguntaria as suas considerações sobre o acontecido, apesar de saber que as tinha muito bem elaboradas com premissas sólidas e desenvolvimento pertinente, onde tudo era continuidade lógica, ainda que de desfecho inesperado. Na medida em que se aproximava, pude perceber nele uma certa luminosidade; era mesmo ele, o Tio Raul, sob a escassa matéria que ainda veste a sua alma.

A despedida foi sem a frase. Fui protocolar, como havia estranhado nos demais, e a minha prima, balançando a chave do carro entre os dedos, disse-me que ia ali e já voltava.

Nenhum comentário:

Postar um comentário