sexta-feira, 22 de abril de 2016

O FANTASMA DA INSÔNIA - Conto de Gilka Coimbra (Uruguaiana, RS)

O FANTASMA DA INSÔNIA

Minha avó – Maria Capovila – tinha sempre histórias para os netos. Contava a todos, independente da idade e do entendimento que teríamos. Como boa contadora de histórias sabia que um dia compreenderíamos parte ou o todo delas e, quem sabe, um de nós passaria adiante as lições que continham. Algumas, pensava eu que nada mais eram que invencionices de avó para assegurar os netos ao seu redor, presos à beira de sua saia. Quantas histórias ficaram pelo caminho e agora ressurgem no limiar do outono de nossas vidas.
Uma delas aconteceu perto do lugar da origem da família, em Ivrea, comuna italiana da Província de Turim, na região de Piemonte há muitos e muitos anos...
***
No sobrado de pedra, um pouco afastado do vilarejo, um dos quartos pertencia a Benedetta, filha do viúvo Giuseppe Barbieri, a única solteira das cinco mulheres, e a preferida do pai. Era conhecida na vila e na família como a mulher que não dormia.
Desde cedo apresentava uma serenidade e um recolhimento avesso às coisas normais da idade e parou de dormir quando a mãe morreu. Por um tempo a parentela acreditou que era sonâmbula, mas depois ficou claro que realmente não dormia. A irmã mais velha, entretanto, desconfiava de Benedetta...
Passava as noites zanzando pela casa, na maioria das vezes, fazendo companhia ao silêncio, gostava de ouvi-lo, aquele que se estabelece à noite quando a casa dorme. Quando falava baixinho – dizem que sozinha – entoava ladainhas, recitava versos de amor, dialogava sussurrando para as sombras dos corredores e dos quartos desabitados. Elucubrava coisas que ninguém entendia, nem mesmo o patriarca da família que, com tanta boa vontade, vigiava e a protegia de qualquer comentário.
O pai tentava entender seu comportamento e do seu quarto, sentado na cadeira de balanço – a mesma que a finada embalou as cinco filhas –, com a porta entreaberta, observava as andanças da caçula pela casa. Chegava a pensar, para justificar seu coração, que a filha nasceu sabendo o valor da ausência – a que ele só descobriu quando a mulher lhe faltou – aquela ausência que dá origem à experiência e que se revela nas entrelinhas do silêncio interior. Tão menina e já conhecia a fronteira da existência que aproxima, mas também separa, pensava Giuseppe. E ali permanecia o pai em vigília noite após noite.
Com o passar do tempo acostumaram-se com a figura insone e na casa ninguém mais estranhava. Dormiam tranquilos, pois a impressão que dava é que Benedetta estava segura, então, esqueceram-se dela – só o pai, disfarçadamente dormia leve e, com o canto do olho, controlava. Habitava nele um medo interior que não sabia explicar, não queria ficar viúvo outra vez.
De tanto zelar por ela, certa noite, cansado não resistiu, relaxou o corpo, inclinou a cabeça pra trás, lentamente soltou o queixo e deixou a cadeira embalar seu sono e o braço pendendo ao lado do corpo. Nessa mesma noite, a ragazza morreu num ímpeto. Como quem tinha pressa, fugiu da vida, antes do pai acordar. Foi-se.
Vó Maria contava que a irmã mais velha jurava que viu, Benedetta descer com ligeireza as escadas do sobrado e a tortuosa viela, que ligava ao povoado de Ivrea, de mãos dadas com alguém. Foi-se e com ela o fantasma da insônia.
***

Minha avó dizia que se esquecêssemos o que nos contava, mais adiante teríamos a chance dos devaneios da insônia, das lições dos próprios silêncios. E ali, haveria sempre outras histórias.

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