sexta-feira, 22 de abril de 2016

PORTA-JOIAS DE LOUÇA - Conto de Gilka Coimbra (Uruguaiana, RS)

PORTA-JOIAS DE LOUÇA

Ela lhe cedeu o quarto num gesto de carinho. Ele aceitou só para agradá-la. Desde pequeno, César gostava daquele aposento. Um mundo de intimidade e mistério parecia cercá-lo sempre que lá entrava. Mesmo que não tocasse em nada, os olhos apoderaram-se dos detalhes. Depois de tantos anos, tudo permanecia igual, até o porta-joias de louça continuava sobre a penteadeira. Fazia parte do cotidiano e das minúcias invioláveis do quarto da mãe. Sempre entre os porta-retratos da família, sempre por perto e vazio.
Quando questionada por que não o usava para guardar suas jóias, ela apenas sorria.
Mas nada disso interessava agora, pensou. Estava sozinho no quarto e na decisão que precisava tomar. Viera para isso. Inquieto, caminhava de um lado a outro e só adormeceu quando a luz da lua entrou azulada e na diagonal das persianas.
Um leve toque na porta o chamou. Pelas escadas do velho sobrado, dirigiu-se à copa, onde a mãe o aguardava para o café. O cheiro da cozinha, àquela hora da manhã, provocou-lhe lembranças. Boas lembranças, que tratou de afastar. Ela não o olhava, vez ou outra espiava pelo canto do olho como se adivinhasse más notícias. César, por sua vez, também queria evitá-las. Entretanto, viera por elas.
– Precisamos conversar e a senhora não vai gostar. – disse de uma só vez, para arrancar o assunto subentendido no silêncio.
– Se sabes que não vou gostar, por que vamos falar? – respondeu a mãe, sentando-se na pontinha da cadeira como criança assustada no primeiro dia de aula.
– Porque é preciso. Não posso mais evitar, nem deixá-la aqui sozinha, sua saúde requer cuidados especiais e eu estou com passagem comprada para o exterior. Preciso terminar algumas cadeiras do meu doutorado. Lembra? – concluiu quase sem fôlego.
Lembrava de algumas coisas, não de tudo, mas de muitas ainda lembrava, pensou a mulher. Baixou a cabeça em direção à xícara de café, para que o filho não visse o medo instalando-se no fundo dos olhos. Pelo menos até que pudesse recuperar-se.
– Pensei que tinhas vindo para ficar comigo. – balbuciou.
– Mamãe! A senhora sabe que não posso. Meu trabalho e meus estudos...
– Ah, sim. Seus estudos são importantes. Eu sei.
– Pois, então! Estou fazendo o que sempre me recomendou, para eu ter um bom futuro. Tem que me ajudar, mãe.
– Eu ajudo filho, eu ajudo.
Terminaram o café da manhã em silêncio. Ela parecia distante, como se a conversa nem tivesse ocorrido. César resumiu:
– Partimos amanhã. Não é preciso levar quase nada. Pegue só o que achar mais importante. Lá terá tudo o que é necessário. Vai acostumar-se logo, logo.
No outro dia, a mãe quase não falou ao longo da viagem. Ele dirigia devagar; para distraí-la fazia comentários sobre o tempo em que o pai era vivo.
– Bons tempos! Lembra, mamãe?
Ela virava o rosto e refugiava-se na paisagem apressada. No colo, segurava com as duas mãos um pequeno pacote para presente que pessoalmente enrolara.
César saiu da clínica onde a deixara, sem conseguir olhar para trás. Aqueles olhos perdidos o perseguiam. Entrou no carro e acelerando retornou à estrada. No trajeto, notou no banco ao lado o pacote que ela, no último instante, colocou-lhe nas mãos. Estacionou o carro na lateral da estrada e rompeu o papel.

A mãe confiara-lhe o porta-joias. Na parte interna, incrustado na louça, leu: As coisas que amo, deixo-as livres...

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