sexta-feira, 22 de abril de 2016

O SALTO - Conto de Augusto Cruz (Salvador, BA)

O SALTO

Não me recordo de meus pais. Na verdade, desde que me lembro a minha memória sempre foi muito curta. Mal recordo da última vez que comi.
Sei que já dei a volta ao mundo, ou pelo menos ao meu mundo, umas cem vezes, ou teriam sido mil?
Algumas imagens surreais são recorrentes: Um escafandrista. Um baú. Um polvo.
Por vezes o som de batidas ecoa em meus ouvidos. Fico tonto, perco a direção.
Vejo meu reflexo num espelho e brigo comigo.
A monotonia do comer, rodar, comer, rodar, comer, rodar, deixa meus nervos à flor da pele.
Já estou cansado dessa vida. Não tenho um oponente, não tenho amigos, não tenho uma fêmea para me confortar.
E então, meu instinto me fez descer até o fundo.
Senti a aspereza das pedras em meu corpo.
Subi a toda velocidade e saltei.
Senti o ar, mas o oxigênio desapareceu.
Era mais alto do que imaginava. Não conseguia respirar. Mas o ar fresco, em contato com meu corpo, me trouxe uma sensação contraditória de prazer e medo.
O salto. A queda. O baque no chão duro.
Ainda me debati uma, duas, três vezes. Já não respirava mais.
Desprendi-me de meu corpo. Olhava-me de cima e via um ser inerte, colorido e patético estatelado no piso marrom.

Tornei-me mais um número nas estatísticas dos peixes Betta suicidas.

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