sexta-feira, 22 de abril de 2016

NEGAÇÃO - Conto de Vera Ione Molina Silva (Uruguaiana, RS)

NEGAÇÃO

Socorreu-se do passado. Abriu o baú da sala de estar e se apropriou de um tempo em que não havia Miguel. Lembranças com cheiro de festa se sobrepuseram à sensação de perda. Melodias alegres encheram o apartamento sombrio. Fotos amareladas de uma adolescente de longos cabelos castanhos recriaram um cenário muito distante. O cheiro ácido dos papéis antigos e a naftalina e o vinil dos long-plays misturaram épocas na memória.

(Uma garoa fina atravessando uma tarde sem presa. Um céu ruço. Água e óleo diesel no asfalto. O couro molhado dos calçados pisando minúsculos arco-íris. Uma casa cheia de sons, onde as pessoas pouco sabiam umas das outras. Pagara para entrar, era a campanha de finanças de um jornal. Do jardim, o cheiro de terra molhada. Era de novo criança na varanda de casa. O cheiro do cachorro e dos bolinhos de chuva e do café recém passado. Miguel chegou mais tarde, assim que a viu, aproximou-se. O contato da roupa úmida adormecia o nariz de Rosário. Era a segunda vez que se viam e os lábios se procuravam molhados de vinho).

Como uma brincadeira de infância que depois de encher uma tarde não tem mais sentido, o baú não prendia mais sua atenção. Refugiou-se no sofá de onde avistava as copas das árvores, ao longo do muro. O militante novo calçando os chinelos do Miguel para ir ao banheiro. Hoje achava engraçado, quando aconteceu, gritou que ele fosse mijar descalço. Não queria que um cara debochado calçasse os chinelos do seu companheiro. Se soubesse que o Miguel ia trocá-la por outra mulher teria outra reação. Pelo menos não era uma jovenzinha com quem casaria, teria filhos. Essa possibilidade a deixou estarrecida.


Deixou o sofá e foi ao quarto. Tateou o chão debaixo da cama, jogaria fora os chinelos. Lembrou Teresa, uma jovem conhecida de militância: homens só deixam os chinelos velhos quando vão embora. O telefone tocou. Engano.

Nenhum comentário:

Postar um comentário