NEGAÇÃO
Socorreu-se
do passado. Abriu o baú da sala de estar e se apropriou de um tempo em que não
havia Miguel. Lembranças com cheiro de festa se sobrepuseram à sensação de
perda. Melodias alegres encheram o apartamento sombrio. Fotos amareladas de uma
adolescente de longos cabelos castanhos recriaram um cenário muito distante. O
cheiro ácido dos papéis antigos e a naftalina e o vinil dos long-plays
misturaram épocas na memória.
(Uma
garoa fina atravessando uma tarde sem presa. Um céu ruço. Água e óleo diesel no
asfalto. O couro molhado dos calçados pisando minúsculos arco-íris. Uma casa
cheia de sons, onde as pessoas pouco sabiam umas das outras. Pagara para
entrar, era a campanha de finanças de um jornal. Do jardim, o cheiro de terra
molhada. Era de novo criança na varanda de casa. O cheiro do cachorro e dos
bolinhos de chuva e do café recém passado. Miguel chegou mais tarde, assim que
a viu, aproximou-se. O contato da roupa úmida adormecia o nariz de Rosário. Era
a segunda vez que se viam e os lábios se procuravam molhados de vinho).
Como
uma brincadeira de infância que depois de encher uma tarde não tem mais
sentido, o baú não prendia mais sua atenção. Refugiou-se no sofá de onde
avistava as copas das árvores, ao longo do muro. O militante novo calçando os
chinelos do Miguel para ir ao banheiro. Hoje achava engraçado, quando
aconteceu, gritou que ele fosse mijar descalço. Não queria que um cara
debochado calçasse os chinelos do seu companheiro. Se soubesse que o Miguel ia
trocá-la por outra mulher teria outra reação. Pelo menos não era uma jovenzinha
com quem casaria, teria filhos. Essa possibilidade a deixou estarrecida.
Deixou
o sofá e foi ao quarto. Tateou o chão debaixo da cama, jogaria fora os chinelos.
Lembrou Teresa, uma jovem conhecida de militância: homens só deixam os chinelos
velhos quando vão embora. O telefone tocou. Engano.
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