sexta-feira, 22 de abril de 2016

HOJE É SEU DIA DELFIM - Conto de Márcio Estamado (Álvares Machado, SP)

HOJE É SEU DIA DELFIM

A cama rangeu sob o corpo preguiçoso. Após o café, com ovos e bacon, o banho rápido e a dificuldade em fechar o paletó amarfanhado nas mangas. Nem sete horas da manhã e já suava. No espelho, o rosto barbeado na noite anterior se parecia com uma grande bexiga. Os lábios finos esboçaram um sorriso. Lembrou-se que o gerente geral estava na cidade fazia dois dias. Já havia visitado a fábrica, tirado fotos e participado de reuniões. E a manhã de hoje seria decisiva para Delfim. O gerente, sisudo em seus grandes óculos de hastes pretas, anunciaria mudanças importantes na empresa. Delfim, funcionário exemplar, teve poucas alegrias em quinze anos de casa. Viu, de sua cadeira, contratações e demissões, choro e riso, mudanças corporativas.
E em sua mesa, os computadores ficavam cada vez menores e mais rápidos. Só ele não mudava. Pontual. Correto. Não comia no escritório nem falava mal dos colegas. E quando, por esquecimento ou distração, cometia erros, balbuciava desculpas para os colegas, que o viam com o carão gordo a ruborizar e a papada a tremer. Mas estes dias haviam sido diferentes de tudo.
Há coisa de duas semanas, ao lado do bebedouro, Delfim ouvira de um experiente colega:
-Seu dia está chegando, hein? Que beleza!
E recebera tapinhas nas costas que quase o fizeram se afogar. E quando Delfim, correndo até sua mesa, consultara o calendário, sentira a respiração encurtar e o disparo do coração. A visita do gerente geral se avizinhava. Então a promoção finalmente chegaria!
Durante aqueles dias, pareceu-lhe que os colegas eram mais cordiais, viu a moça da limpeza a sorrir-lhe e mesmo o chefe, sempre comedido, elogiou-o por duas vezes na frente de todos.
Delfim sentia-se então em uma espécie de sonho, em que cada manhã trazia a doce promessa de uma vida melhor e mais confortável. Chegava então a sua hora!
Na manhã decisiva, chegou apressado. Tinha na mão o indefectível lenço, que a todo o momento limpava o suor de sua testa. A caminho de sua mesa, um ofegante Delfim ouvia, ruborizando:
-Parabéns, Delfim! -É hoje, hein? -Temos que comemorar, Delfim!
Sentou-se. Logo chegava o gerente geral. Barba branca, princípio de calvície e gravata colorida.
-Este é um de nossos mais experientes funcionários, senhor Almeida. Apresento-lhe Delfim Resende.
-Muito prazer! Já ouvi muito de você.
Delfim sentiu que ruborizara novamente e quando tentou responder, já ia longe o gerente geral. Deixou em sua mão gorda e suada o perfume do sucesso e dos altos salários. Passou a manhã. Ao meio-dia, conversa alta durante a saída do gerente geral e sua comitiva. Almoçariam fora e sequer olharam para os lados. Quando Delfim retornou de seu almoço, a cúpula já estava outra vez na sala de reuniões. A tarde se arrastava. Relatórios, números, assinaturas, toda a mecanicidade que a ele era familiar, parecia ter se tornado algo indecifrável. Não conseguia se concentrar. Olhava a todo o momento para a porta da sala de reuniões. Quando pensava em chá de camomila, um office-boy interrompeu suas intenções:
-Seu Delfim, é melhor o senhor se preparar. Parece que daqui a pouco lhe chamam. Não era pra eu falar nada, mas o senhor sabe como é, tem coisas que a gente não consegue esconder, não é?
A cara espinhenta e os cabelos com gel do adolescente deram, Delfim não soube por que, mais dramaticidade à cena. Levantou-se e começou a caminhar, de um lado para outro. Finalmente a porta da grande sala se abriu. A cabeça do chefe apareceu:
-Delfim, por favor! Faz favor, vem até aqui.
Pegar ou não o paletó? A camisa estava encharcada de suor, mas não queria parecer formal demais. Mas que diabos, afinal era a tão sonhada promoção! Por fim, decidiu-se pelo casaco. Entrou na sala a passos lentos. Sentados ao redor de uma grande mesa oval, homens e mulheres com olhares amistosos, quase sorrindo. A temperatura do ar-condicionado aumentou em Delfim a tremedeira.
-Delfim... O chefe começou a falar. Havia chegado a hora.
-Sim, senhor.
-Delfim, nós gostaríamos de aproveitar a presença aqui do senhor Almeida... Por favor, minha gente, uma salva de palmas para o nosso gerente geral, que além de competente é uma grande figura!
Delfim aplaudiu freneticamente, o suor a pingar-lhe da testa.
-Bom, queríamos aproveitar a presença dele para dizer que você é um dos nossos melhores funcionários e...
Levantou-se.
-Ah, homem. Venha de lá um abraço!
Delfim foi quase sufocado pelo chefe, que em seguida gritou:
-Verônica! Pode trazer!
Mas que relação teria a servente com aquele momento tão importante? Entrou então Verônica. Em suas mãos, um bolo de chocolate. Assim que pisou na sala de reuniões, começou o Parabéns a Você. Um dos mais entusiasmados era o gerente geral.
-Senhor Resende, é uma alegria poder estar aqui neste momento, partilhando uma data tão importante. Feliz aniversário!
Delfim esboçava um meio-sorriso a cada abraço ou aperto de mão. E eles sucederam-se sem ao menos dar ao experiente funcionário a chance de pensar. À medida que o cumprimentavam, retiravam-se da sala. Os últimos da fila foram justamente o chefe e o gerente geral que o saudou novamente e acrescentou:
-Olha, o bolo é todo seu, senhor Resende, por mais tentado que eu esteja. O senhor merece!
Um abraço seguido de sonoros tapas nas costas rematou a curta conversa. O chefe o cumprimentou rapidamente e também se retirou. No centro da grande mesa, alguém depositara o bolo de chocolate. Em silêncio, sozinho na sala, Delfim divisou no quadro de avisos a data, da qual já nem lembrava, tamanha a expectativa que tomara conta de seu ser. Abaixo dos números representando mês e dia, duas frases escritas em caligrafia ruim: “Aniversário do Delfim. Lembrar da surpresinha”.

Ao término do expediente, Delfim deixou o escritório com o bolo na mão. Os vigias do prédio viram-no entrar no velho carro de sempre. No outro dia contariam, alegres, sobre a emoção do experiente funcionário. Ao entrar no veículo, depositou o bolo no banco a seu lado e, debruçado ao volante, chorou por longos minutos.

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