HOJE
É SEU DIA DELFIM
A
cama rangeu sob o corpo preguiçoso. Após o café, com ovos e bacon, o banho
rápido e a dificuldade em fechar o paletó amarfanhado nas mangas. Nem sete
horas da manhã e já suava. No espelho, o rosto barbeado na noite anterior se
parecia com uma grande bexiga. Os lábios finos esboçaram um sorriso. Lembrou-se
que o gerente geral estava na cidade fazia dois dias. Já havia visitado a
fábrica, tirado fotos e participado de reuniões. E a manhã de hoje seria
decisiva para Delfim. O gerente, sisudo em seus grandes óculos de hastes
pretas, anunciaria mudanças importantes na empresa. Delfim, funcionário
exemplar, teve poucas alegrias em quinze anos de casa. Viu, de sua cadeira,
contratações e demissões, choro e riso, mudanças corporativas.
E
em sua mesa, os computadores ficavam cada vez menores e mais rápidos. Só ele
não mudava. Pontual. Correto. Não comia no escritório nem falava mal dos
colegas. E quando, por esquecimento ou distração, cometia erros, balbuciava
desculpas para os colegas, que o viam com o carão gordo a ruborizar e a papada
a tremer. Mas estes dias haviam sido diferentes de tudo.
Há
coisa de duas semanas, ao lado do bebedouro, Delfim ouvira de um experiente
colega:
-Seu
dia está chegando, hein? Que beleza!
E
recebera tapinhas nas costas que quase o fizeram se afogar. E quando Delfim,
correndo até sua mesa, consultara o calendário, sentira a respiração encurtar e
o disparo do coração. A visita do gerente geral se avizinhava. Então a promoção
finalmente chegaria!
Durante
aqueles dias, pareceu-lhe que os colegas eram mais cordiais, viu a moça da
limpeza a sorrir-lhe e mesmo o chefe, sempre comedido, elogiou-o por duas vezes
na frente de todos.
Delfim
sentia-se então em uma espécie de sonho, em que cada manhã trazia a doce
promessa de uma vida melhor e mais confortável. Chegava então a sua hora!
Na
manhã decisiva, chegou apressado. Tinha na mão o indefectível lenço, que a todo
o momento limpava o suor de sua testa. A caminho de sua mesa, um ofegante
Delfim ouvia, ruborizando:
-Parabéns,
Delfim! -É hoje, hein? -Temos que comemorar, Delfim!
Sentou-se.
Logo chegava o gerente geral. Barba branca, princípio de calvície e gravata
colorida.
-Este
é um de nossos mais experientes funcionários, senhor Almeida. Apresento-lhe Delfim
Resende.
-Muito
prazer! Já ouvi muito de você.
Delfim
sentiu que ruborizara novamente e quando tentou responder, já ia longe o
gerente geral. Deixou em sua mão gorda e suada o perfume do sucesso e dos altos
salários. Passou a manhã. Ao meio-dia, conversa alta durante a saída do gerente
geral e sua comitiva. Almoçariam fora e sequer olharam para os lados. Quando
Delfim retornou de seu almoço, a cúpula já estava outra vez na sala de
reuniões. A tarde se arrastava. Relatórios, números, assinaturas, toda a
mecanicidade que a ele era familiar, parecia ter se tornado algo indecifrável.
Não conseguia se concentrar. Olhava a todo o momento para a porta da sala de
reuniões. Quando pensava em chá de camomila, um office-boy interrompeu suas
intenções:
-Seu
Delfim, é melhor o senhor se preparar. Parece que daqui a pouco lhe chamam. Não
era pra eu falar nada, mas o senhor sabe como é, tem coisas que a gente não
consegue esconder, não é?
A
cara espinhenta e os cabelos com gel do adolescente deram, Delfim não soube por
que, mais dramaticidade à cena. Levantou-se e começou a caminhar, de um lado
para outro. Finalmente a porta da grande sala se abriu. A cabeça do chefe
apareceu:
-Delfim,
por favor! Faz favor, vem até aqui.
Pegar
ou não o paletó? A camisa estava encharcada de suor, mas não queria parecer
formal demais. Mas que diabos, afinal era a tão sonhada promoção! Por fim,
decidiu-se pelo casaco. Entrou na sala a passos lentos. Sentados ao redor de
uma grande mesa oval, homens e mulheres com olhares amistosos, quase sorrindo.
A temperatura do ar-condicionado aumentou em Delfim a tremedeira.
-Delfim...
O chefe começou a falar. Havia chegado a hora.
-Sim,
senhor.
-Delfim,
nós gostaríamos de aproveitar a presença aqui do senhor Almeida... Por favor,
minha gente, uma salva de palmas para o nosso gerente geral, que além de
competente é uma grande figura!
Delfim
aplaudiu freneticamente, o suor a pingar-lhe da testa.
-Bom,
queríamos aproveitar a presença dele para dizer que você é um dos nossos
melhores funcionários e...
Levantou-se.
-Ah,
homem. Venha de lá um abraço!
Delfim
foi quase sufocado pelo chefe, que em seguida gritou:
-Verônica!
Pode trazer!
Mas
que relação teria a servente com aquele momento tão importante? Entrou então
Verônica. Em suas mãos, um bolo de chocolate. Assim que pisou na sala de
reuniões, começou o Parabéns a Você. Um dos mais entusiasmados era o gerente
geral.
-Senhor
Resende, é uma alegria poder estar aqui neste momento, partilhando uma data tão
importante. Feliz aniversário!
Delfim
esboçava um meio-sorriso a cada abraço ou aperto de mão. E eles sucederam-se
sem ao menos dar ao experiente funcionário a chance de pensar. À medida que o
cumprimentavam, retiravam-se da sala. Os últimos da fila foram justamente o
chefe e o gerente geral que o saudou novamente e acrescentou:
-Olha,
o bolo é todo seu, senhor Resende, por mais tentado que eu esteja. O senhor
merece!
Um
abraço seguido de sonoros tapas nas costas rematou a curta conversa. O chefe o
cumprimentou rapidamente e também se retirou. No centro da grande mesa, alguém
depositara o bolo de chocolate. Em silêncio, sozinho na sala, Delfim divisou no
quadro de avisos a data, da qual já nem lembrava, tamanha a expectativa que
tomara conta de seu ser. Abaixo dos números representando mês e dia, duas
frases escritas em caligrafia ruim: “Aniversário do Delfim. Lembrar da
surpresinha”.
Ao
término do expediente, Delfim deixou o escritório com o bolo na mão. Os vigias
do prédio viram-no entrar no velho carro de sempre. No outro dia contariam,
alegres, sobre a emoção do experiente funcionário. Ao entrar no veículo,
depositou o bolo no banco a seu lado e, debruçado ao volante, chorou por longos
minutos.
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