DAS
PROFUNDEZAS (Para Herman Melville)
Call
me Ishmael.
(primeira
frase do livro Moby Dick, de Herman Melville)
Dizem
que já matei mais de mil homens. Pode ser verdade, pouco importa.
Sei
que afundei navios de todo tipo e tamanho: fragatas, escunas, veleiros,
armadas, pesqueiros, cargueiros e negreiros. Foram da Escandinávia, Prússia,
Áustria, Espanha, Portugal, Inglaterra e, principalmente, da América. Reconheço
bandeiras e flâmulas, apitos e silvos e me divirto tentando adivinhar a
nacionalidade de cada um. Quase sempre acerto.
Atacar
os pesqueiros me apraz, em especial os baleeiros. São barcos pesados, mas
rápidos, e por isso tornam-se um desafio e uma diversão, além, claro, de uma
boa vingança.
Não
entendo o porquê dessa fome doentia por devorar tudo o que os oceanos oferecem.
Por vezes matam apenas para extrair alguns nacos de animais submarinos, como
barbatanas, caudas e dentes.
Nunca
comi humanos, como erroneamente querem fazer crer, quando me demonizam, mas
admito que já dilacerei pernas, braços e crânios, sem dó, nem piedade.
Artimanhas,
estratégias, gritos, batuques, iscas, armadilhas... tudo isso é inútil, meu
senso de direção é especial e me coloca em vantagem, ademais minha inteligência
é sempre subestimada, mais uma vantagem a meu favor.
Meu
criador me fez diferente de todas as outras de minha espécie. Sou enorme, estou
no topo da cadeia alimentar, diferente de minhas irmãs, e tenho um couro duro
de penetrar. Sou mais veloz que o Nautilus e meu olhar é profundo e diabólico,
é o que dizem as melancólicas canções dos marinheiros que sobreviveram aos meus
ataques.
Há
um velho lobo do mar que me atrai: ele é ambicioso, odioso e raivoso e até lhe
arranquei uma perna e afundei-lhe duas embarcações. Sinto seu cheiro a mil
léguas de distância. Poderia tê-lo matado em mais de uma oportunidade, mas me
divirto em alimentar seu ódio e com a sua vaidade em querer ostentar o título
de meu assassino.
Os
marujos afirmam que ele é a própria encarnação do diabo. Não, ele é humano, mas
se permite apresentar ao mundo sem máscaras, expondo suas vicissitudes, sem
vergonha de julgar e ser julgado.
Não
gosto dele. Admito que é persistente e tem a coragem de um tubarão, mas no
fundo é um arrogante e frio matador de baleias.
Faz
alguns meses que não o vejo, mas há pouco farejei seu cheiro e sei que logo
verei as velas de seu navio baleeiro. Ele cheira a rum, suor e tabaco, como
todo marujo que se preza, mas há um toque de enxofre, fruto de medicamentos
para curar ardores estomacais. E, mais do que tudo, farejo o pavor dos homens
que o acompanham, eles temem a mim tanto quanto a ele.
É
o odor do medo humano que me deixa em torpor. É minha droga para agitar-me.
Sinto vontade de saltar, de me exibir e mostrar meu poder aos insignificantes
pescadores.
Finalmente
vislumbro as velas, dessa vez é uma embarcação maior. Venha pescador
amaldiçoado! Hoje não me saciarei em tirar-lhe apenas uma perna! Prepare seu
melhor arpão!
Alguns
botes foram lançados ao mar. Eles me viram! Com o navio a uma milha de
distância iniciei um nado a 30 nós, bati na popa e o navio adernou, vários
homens caíram na gélida água. Logo morrerão de frio. Da mesma forma que
derrubei o Essex.
Saltei
e em minha queda produzi ondas que viraram dois dos cinco botes que tentavam me
cercar, mergulhei e quando dei a volta para retornar à superfície vi alguns
homens sendo resgatados. Mandíbula aberta, lacerei pernas e troncos e o horror
se estampou nos rostos retorcidos dos marujos que já pressentiam serem os
próximos desmembrados.
Senti
uma pontada em meu dorso. Um arpão mais duro que o habitual, o calor de meu
sangue me aqueceu e só fez aumentar meu frenesi, que já era grande pela
batalha. O gosto amargo da carne humana que cuspi me deixava mais enfurecida.
Em instantes, peixes menores e parasitas se alimentarão deles!
Outra
pontada, agora em minha lateral. Definitivamente, precisava pôr fim a essa
brincadeira! Num movimento circular virei mais dois botes, mordi alguns homens,
mas ainda faltava um barquinho, exatamente o liderado pelo inimigo maior. Ouvi
gritos de dor e desespero dos poucos sobreviventes que ainda teimavam em nadar,
logo congelarão ou afundarão.
Apesar
da gritaria, os urros, impropérios e blasfêmias do líder da tripulação, ainda
soavam mais altos. Eu ouvia e o ódio tomava conta de mim.
Eu
sou o demônio que o mandará às profundezas!
Mergulhei
e voltei à superfície ao lado de seu bote, uma onda por mim provocada o
balançou e os homens caíram ao mar, menos um, o meu rival. Ele foi rápido e
atirou seu grosso arpão em mim. Senti o impacto do metal, rasgando meu couro.
Mais do meu sangue se misturou à agitada água. Em retirada, nadei no sentido
contrário à embarcação, mas maldito veio junto. Na ânsia de não cair do barco,
ele se amarrara, mas usou, por equívoco, a mesma corda de sua arma, mergulhei e
nadei em círculos sentindo a dor provocada pelo arpão, senti uma coisa presa em
mim, era ele, o meu antagonista, estávamos ambos enrolados na mesma corda do
arpão. Ele gritou “Matei a baleia!” e cantou sua vitória.
Avistei
um caixão flutuando e nele havia um homem jovem. Ouvi meu assassino e vítima
gritando para o sobrevivente: “Escreva a história Ishmael”. Afundei. E ele,
aprisionado a mim, me acompanhou. Nunca mais voltamos à superfície.
Nenhum comentário:
Postar um comentário