sexta-feira, 22 de abril de 2016

DAS PROFUNDEZAS - Conto de Augusto Cruz (Salvador, BA)

DAS PROFUNDEZAS (Para Herman Melville)

Call me Ishmael.
(primeira frase do livro Moby Dick, de Herman Melville)

Dizem que já matei mais de mil homens. Pode ser verdade, pouco importa.
Sei que afundei navios de todo tipo e tamanho: fragatas, escunas, veleiros, armadas, pesqueiros, cargueiros e negreiros. Foram da Escandinávia, Prússia, Áustria, Espanha, Portugal, Inglaterra e, principalmente, da América. Reconheço bandeiras e flâmulas, apitos e silvos e me divirto tentando adivinhar a nacionalidade de cada um. Quase sempre acerto.
Atacar os pesqueiros me apraz, em especial os baleeiros. São barcos pesados, mas rápidos, e por isso tornam-se um desafio e uma diversão, além, claro, de uma boa vingança.
Não entendo o porquê dessa fome doentia por devorar tudo o que os oceanos oferecem. Por vezes matam apenas para extrair alguns nacos de animais submarinos, como barbatanas, caudas e dentes.
Nunca comi humanos, como erroneamente querem fazer crer, quando me demonizam, mas admito que já dilacerei pernas, braços e crânios, sem dó, nem piedade.
Artimanhas, estratégias, gritos, batuques, iscas, armadilhas... tudo isso é inútil, meu senso de direção é especial e me coloca em vantagem, ademais minha inteligência é sempre subestimada, mais uma vantagem a meu favor.
Meu criador me fez diferente de todas as outras de minha espécie. Sou enorme, estou no topo da cadeia alimentar, diferente de minhas irmãs, e tenho um couro duro de penetrar. Sou mais veloz que o Nautilus e meu olhar é profundo e diabólico, é o que dizem as melancólicas canções dos marinheiros que sobreviveram aos meus ataques.
Há um velho lobo do mar que me atrai: ele é ambicioso, odioso e raivoso e até lhe arranquei uma perna e afundei-lhe duas embarcações. Sinto seu cheiro a mil léguas de distância. Poderia tê-lo matado em mais de uma oportunidade, mas me divirto em alimentar seu ódio e com a sua vaidade em querer ostentar o título de meu assassino.
Os marujos afirmam que ele é a própria encarnação do diabo. Não, ele é humano, mas se permite apresentar ao mundo sem máscaras, expondo suas vicissitudes, sem vergonha de julgar e ser julgado.
Não gosto dele. Admito que é persistente e tem a coragem de um tubarão, mas no fundo é um arrogante e frio matador de baleias.
Faz alguns meses que não o vejo, mas há pouco farejei seu cheiro e sei que logo verei as velas de seu navio baleeiro. Ele cheira a rum, suor e tabaco, como todo marujo que se preza, mas há um toque de enxofre, fruto de medicamentos para curar ardores estomacais. E, mais do que tudo, farejo o pavor dos homens que o acompanham, eles temem a mim tanto quanto a ele.
É o odor do medo humano que me deixa em torpor. É minha droga para agitar-me. Sinto vontade de saltar, de me exibir e mostrar meu poder aos insignificantes pescadores.
Finalmente vislumbro as velas, dessa vez é uma embarcação maior. Venha pescador amaldiçoado! Hoje não me saciarei em tirar-lhe apenas uma perna! Prepare seu melhor arpão!
Alguns botes foram lançados ao mar. Eles me viram! Com o navio a uma milha de distância iniciei um nado a 30 nós, bati na popa e o navio adernou, vários homens caíram na gélida água. Logo morrerão de frio. Da mesma forma que derrubei o Essex.
Saltei e em minha queda produzi ondas que viraram dois dos cinco botes que tentavam me cercar, mergulhei e quando dei a volta para retornar à superfície vi alguns homens sendo resgatados. Mandíbula aberta, lacerei pernas e troncos e o horror se estampou nos rostos retorcidos dos marujos que já pressentiam serem os próximos desmembrados.
Senti uma pontada em meu dorso. Um arpão mais duro que o habitual, o calor de meu sangue me aqueceu e só fez aumentar meu frenesi, que já era grande pela batalha. O gosto amargo da carne humana que cuspi me deixava mais enfurecida. Em instantes, peixes menores e parasitas se alimentarão deles!
Outra pontada, agora em minha lateral. Definitivamente, precisava pôr fim a essa brincadeira! Num movimento circular virei mais dois botes, mordi alguns homens, mas ainda faltava um barquinho, exatamente o liderado pelo inimigo maior. Ouvi gritos de dor e desespero dos poucos sobreviventes que ainda teimavam em nadar, logo congelarão ou afundarão.
Apesar da gritaria, os urros, impropérios e blasfêmias do líder da tripulação, ainda soavam mais altos. Eu ouvia e o ódio tomava conta de mim.
Eu sou o demônio que o mandará às profundezas!
Mergulhei e voltei à superfície ao lado de seu bote, uma onda por mim provocada o balançou e os homens caíram ao mar, menos um, o meu rival. Ele foi rápido e atirou seu grosso arpão em mim. Senti o impacto do metal, rasgando meu couro. Mais do meu sangue se misturou à agitada água. Em retirada, nadei no sentido contrário à embarcação, mas maldito veio junto. Na ânsia de não cair do barco, ele se amarrara, mas usou, por equívoco, a mesma corda de sua arma, mergulhei e nadei em círculos sentindo a dor provocada pelo arpão, senti uma coisa presa em mim, era ele, o meu antagonista, estávamos ambos enrolados na mesma corda do arpão. Ele gritou “Matei a baleia!” e cantou sua vitória.

Avistei um caixão flutuando e nele havia um homem jovem. Ouvi meu assassino e vítima gritando para o sobrevivente: “Escreva a história Ishmael”. Afundei. E ele, aprisionado a mim, me acompanhou. Nunca mais voltamos à superfície.

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