sexta-feira, 22 de abril de 2016

O CASO DA MULA-SEM-CABEÇA - Conto de Dôra Borges (Cássia, MG)

O CASO DA MULA-SEM-CABEÇA

Lá pelas bandas da Serra Preta havia uma cisma de assombração que era afamada por toda a região, sobretudo na época da Quaresma (Ô tempo danado, sô!). Ninguém se arriscava a passar por aquela encruzilhada, onde a estrada estreita fazia uma praça - dava de se alargar - talvez para facilitar a parada daqueles que por ali passavam a cavalo e se confundiam por onde seguir nos caminhos do entroncamento. Até diziam que, por ser um lugar assombrado, ao chegar ali a confusão era certa, principalmente à noite (...e o medo também).
Por aqueles lados, o que não faltava era uma boa estória sobre aquela passagem. Mas a que vou contar agora, eu juro que foi verdade porque ouvi da minha mãe, que ouviu da sua avó, que contou com detalhes de se arrepiar.
Era no tempo da quaresma (como tinha que ser) e João Francisco, Teobaldo, Joaquim e Ozório, dois irmãos da minha bisavó e dois amigos deles, resolveram ficar na cidadezinha até o anoitecer, aproveitando a prosa no bar do Juca, pois a lua era cheia e a estrada estaria iluminada. Um pouco alegre depois de alguns goles a mais, subiram em seus cavalos trotadores e seguiram a viagem, uma légua e meia até as primeiras fazendas. Mais ou menos na metade do caminho, iriam passar pela tal encruzilhada, seria inevitável. Não tinham nem uma trilha para desviarem.
A conversa animada, entre piadas e gargalhadas, foi interrompida bruscamente ao avistarem um clarão no alto do morro, iluminando ainda mais a areia branca da estrada. Era a mula-sem-cabeça, não tiveram dúvida. Ela vinha para a encruzilhada encontrar outra que estava arrastando as patas pelos lados de lá.
Não havia tempo para mais nada, a não ser fazer o que aprenderam com os seus antepassados. Desceram dos cavalos, saíram da estrada e Teobaldo desenhou com um pedaço de galho de árvore seca, uma estrela enorme chamada “cinco Salomão”, porque tinha cinco pontas iguais. Dentro dela, colocaram os cavalos e deitaram debruço. Ozório recomendou a todos para esconderem as unhas, os dentes e fechar os olhos, pois a mula não podia “ver” essas partes do corpo de nenhum deles (nunca entendi este detalhe, pois nem a minha fértil imaginação de criança, desde a primeira vez que ouvi esse caso, pode localizar os olhos desta assombração). Fazendo isso, eles estavam salvos. Foi uma correria danada para darem conta de se ajeitarem antes que ela passasse. E ao ouvirem as patas da “bicha” tinindo nas pedras da estrada, e o poeirão levantando após a encruzilhada, sentiram-se aliviados.
Eles não foram notados porque ela estava furiosa para encontrar a sua rival. O encontro das duas foi uma briga só, não dava para olharem para trás, seria arriscado. Mas o fogaréu que se avistava de longe já era conhecido por qualquer caboclo da roça.
Passado o medo e o susto, puderam pegar os seus cavalos e saírem da estrada. Sem voz e com os olhos arregalados, chegaram em suas fazendas com as calças borradas.
No outro dia, os aventureiros tinham mais uma estória da mula-sem-cabeça da encruzilhada da Serra Preta para contar, sem esquecer os minuciosos detalhes que o acontecido merecia.

Ainda hoje as novas gerações da minha família escutam os mais “reais” casos de assombração (que eu faço questão de contar) e, à meia-noite de lua cheia, na sexta-feira da paixão, ninguém se arrisca a sair na porta de casa ou a olhar da janela para a rua, pois é certo que podem ver uma mula-sem-cabeça descendo a Av. Amazonas ou o carroção de rodas quadradas subindo a Rua Dep. Delson Scarano, rumo ao cemitério da pacata cidade do interior das Gerais.

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