sexta-feira, 22 de abril de 2016

SEMPRE A PONTE - Conto de Vera Ione Molina Silva (Uruguaiana, RS)

SEMPRE A PONTE


A praça, através da janela, um filme antigo sobre uma tela ondulada. O carro estalava sob os quarenta graus centígrados. Ao se locomover lento, parecia tragar uma faixa de asfalto derretido.
Muitos anos haviam passado desde a noite em que tomara o ônibus sentindo aquele vento morno. Deixara para trás a rotina que por vinte anos estendera os dias inchados de cantos de pássaros à beira do rio Uruguai.

Partira com as roupas da Lília, reformadas pela mãe. Sentou à janela, o rosto fixo nas estrelas que jogavam uma corrida sem trégua com o ônibus. Não trazia planos nem sonhos, somente a necessidade de recomeçar alguma coisa que se parecesse com uma vida.

Surpreendia-se por conseguir olhar a ponte como um detalhe da paisagem. Não sentiu monotonia quando a atravessou na camioneta cheirando a ovelha e remédio de gado. Pedia ao chauffeur de Carlos Castellán mais velocidade, o rosto para fora, o vento ajudava a suportar a náusea.

Quinze anos depois, pedia ao colega mais velocidade enquanto esperavam a hora da entrevista com o diretor da faculdade. Não estava apreensiva, era apenas uma formalidade, a vaga para o curso de História era garantida. Não se questionava quanto ao propósito do emprego na cidade que deixara há tanto tempo. Lá, fora apenas um número a mais; aqui, seria a professora especializada que faltava.

Não tivera uma vida má nos anos passados fora. Os primeiros tempos foram tristes, sentia saudade da mãe e do irmão adolescente. A mãe costurando, o irmão entregando as encomendas para as senhoras sujeitas aos humores variados pela maior ou menor dosagem de moderadores de apetite.

No primeiro ano fez algumas amizades que a acompanhariam por toda a estada em Porto Alegre. Não conseguiu aprovação na Universidade Federal, mas a cumplicidade da Lília mandando secretamente algum dinheiro e a datilografia de trabalhos para boa parte da turma custearam a mensalidade e o apartamento dividido com mais duas colegas.

Rosário tinha a sensação de que sempre carregaria consigo aquela dor do abandono que se confundia com dor física. Lília tomou as decisões por ela: o médico do outro lado da ponte, a mudança, a Faculdade.

Rosário encontrou Miguel em 1981. Ele estava voltando para o Brasil. Não era mais o adolescente fascinado pela luta armada de quem Lília falava baixinho para ela antes de casar com João.

Ela acompanhava Miguel nas palestras promovidas pelos diretórios acadêmicos. O mesmo Miguel que propagandeara a luta armada, analisando outros caminhos. Ele tirava os óculos e apertava as pálpebras cansadas sobre os olhos verdes. Ela não conseguia evitar de sentir ciúme do amor adolescente do Miguel e da Lília.

Rosário e Miguel se encaminham para o box 38. Ele tomava ônibus naquele lugar desde o tempo quando veio procurar emprego em Porto Alegre. Ela nunca visitou aquela região da colônia, treme de frio dentro de um casaco de pele de cabrito comprado na Argentina faz tempos.

As bocas deles soltam um vapor espesso, encostam os narizes gelados.

Temos tempo para um café, ele cochicha quentinho no ouvido dela.

Dois cafés, o da Rosário é com creme. Muito açúcar, o café fica mais claro e menos quente, a nata suaviza o sabor.

Trocam um beijo demorado, a língua dele, aquecida; os lábios dela, doces.
Ele a abraça e, acariciando a pele do casaco, a tranquiliza: tudo vai sair bem, eles vão gostar de ti.
Caminham para o ônibus. As poltronas forradas de plásticos, geladas. Se abraçam, o motorista dá a partida. Miguel dorme, anda cansado. Rosário encosta a testa no vidro embaçado e frio, muito escuro, desiste de olhar para fora. Cochila e se sobressalta.

O dia começa a clarear, ele acorda.

E tu, não dormes? Fala perto do rosto da Rosário e ela sente um calor no nariz. Nós temos o mesmo hábito, ela pensa, e ele a olha de um jeito intenso. Estão ligados por uma espécie de éter, exalado pelos olhos, pelo nariz, por todos os poros. Eu nunca senti isso antes, ela murmura. Dormem abraçados até a chegada. Ele começa a reconhecer cada balcão, cada bêbedo, cada louco da rodoviária e das ruas. Caminham no barro vermelho.

Não tem asfalto?

Não, cuidado a poça d’água. Ali é a igreja, à direita, no meio da quadra, a casa da minha tia.

As colinas que cercam a cidade são tão altas, tantas, Rosário pensa numa paisagem de livros escolares e lembra das planuras que se acostumou a enxergar na infância e na fazenda do marido da prima. A cozinha, aquecida pelo fogão à lenha. Vem a dona da casa, ri, beija o filho e chama a muter.
Eu sou uma estranha aqui, não sei o que conversar com eles, ela pensa.

Sentam em volta do fogão, a erva do mate é forte, como ela gosta, a família do Miguel a trata com carinho. Tão diferentes das pessoas a quem ela estava acostumada, cheias de subterfúgios, indiretas.
Os pés das mulheres em sapatos de lã, as falas carregadas de erres vibrantes e os substantivos de gêneros mal flexionados...

Nos últimos anos, conseguiu superar o rompimento com Miguel.


Fora ingênua mais uma vez. Entrou muito pura para a política, pensava que os companheiros de esquerda tinham outra ética. Talvez não fosse nada disso, o problema devia ser com ela. Miguel não fora sacana, qualquer pessoa tem direito de se desinteressar por outra. Ou não? Por que com algumas pessoas não acontecia isso? Conhecia casais que estavam juntos há vinte, trinta anos. Talvez ela nem quisesse isso. Prometera-se não sofrer mais por amor, a vida tinha outras coisas para oferecer que machucavam menos.

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