sexta-feira, 22 de abril de 2016

O SUSTO - Conto de Gilka Coimbra (Uruguaiana, RS)

O SUSTO

Quase novembro, e a manhã com preguiça de começar. Ainda sente a dormência no corpo e os olhos remelentos que, transbordando sono, negam-se a acordar. Sentado aguarda. Não tem muito que fazer, não consegue. O rádio mal sintonizado do outro lado da bancada repete um som muitas vezes incompreensível para ele. Os pés balançam pendurados, indolentes, e os mexe só para ver a sombra que reflete na lateral do armário da cozinha. Como se caminhasse – a sombra. Mesmo assim, inapetente de curiosidade vê o gotejar cadenciado de um pingo e outro. E, ali, deixa ficar os olhos semi-abertos por um tempo, até que a luz do sol bate na pia e o reflexo colorido que ultrapassa a água o incomoda. Desvia-os. Uma lombeira toma conta, dobra os braços sobre a pequena mesa que o ampara e deita a cabeça vazia de idéias, só igualada ao vazio do estomago da hora. Aguarda sozinho, imerso no silêncio e no torpor morno que o domina. É quando as vê. Formigas em fila contra a parede rente ao chão num ir e vir compassado. Hipnotizado acompanha trajetórias, enquanto uma mosca estonteada pelo cheiro úmido do suor zumbe e voa ao seu redor.

Apressada tropeçou, e na busca do equilíbrio, jogou o corpo e os braços para frente. O açucareiro de porcelana, que há anos estava na família, chocou-se contra a parede. Rachou com um estrondo. No mesmo instante, começou a chover cacos. O som seco do baque e o grito dela ocuparam seus ouvidos. Como um temporal de verão, cristais de vidro e açúcar tamborilaram no chão, pontilhando o assoalho com um rastro branco e doce. Imediatamente, um véu negro, desenrolado ao vento, invadiu os fragmentos junto à parede. As formigas perderam a fila e o rumo na mesma sintonia do choro forte que invade a cozinha. Ele leva as mãos ao rosto movido pelo susto suspenso no ar e continua a chorar, afinal, é apenas uma criança a espera da mãe para o mingau da manhã.

Nenhum comentário:

Postar um comentário