sexta-feira, 22 de abril de 2016

DO RIO - Conto de Augusto Cruz (Salvador, BA)

DO RIO

Após três dias de caça estávamos felizes! Trazíamos comida suficiente para a tribo e tão cedo não precisaríamos nos embrenhar na mata novamente. No caminho de volta à aldeia contávamos e recontávamos nossas histórias de caçador, alterando os fatos para transformar a caçada em um ato heroico.
Ao chegarmos na aldeia havia algo de estranho. O silêncio com que fomos recebidos contrastava com a alegria habitual com que os caçadores costumavam ser acolhidos em seu retorno, afinal trazíamos alimento para todos.
Nossos semblantes alegres e festivos, deram lugar a faces preocupadas. O que teria acontecido de ruim?
Os quinze homens que saíram para caçar retornaram vivos e com algo de comer pendurado nas costas, por que estavam todos cabisbaixos, com exceção das crianças, que alheias a qualquer problema, corriam, pulavam, gritavam e festejavam nosso retorno.
Procurava pela minha esposa e ela estava na oca grande ao lado das demais esposas de meus companheiros de aventuras no matagal. Elas não vieram ao nosso encontro. As quinze mulheres dos quinze recém-chegados mantinham-se em pé, estáticas, em frente da oca grande.
O cacique e o pajé vieram ter conosco. Ambos demonstravam apreensão e lançavam-nos olhares tensos. O cacique olhava para nós, mas não permitia que seu olhar cruzasse com o de nenhum de nós. Já o pajé, com a pintura no rosto que costumava usar para invocar os deuses, caminhava entre nós, serpenteando de um lado para o outro, de vez em quando parava ao lado de um dos homens e soprava-lhe em um dos ouvidos.
De repente o pajé pôs-se a realizar sua dança, evocando os deuses da mata e agradecendo pela vida dos caçadores e da fartura da caçada. Foi o cacique quem o interrompeu com um gesto abrupto, ao mesmo tempo em que nossas mulheres lentamente começaram a andar em nossa direção.
Antes que elas chegassem o cacique falou em voz alta, mas tensa: “Todas grávidas!”
Não entendi, na verdade eu ouvi bem, mas não compreendi o que ele queria dizer com aquilo e pedi que repetisse, mas foi o pajé, quem respondeu: “Todas grávidas! As barrigas cresceram ao mesmo tempo!”
Mas como? Fomos todos traídos ao mesmo tempo? Por que as mulheres dos caçadores os envergonhariam diante de toda a tribo? E tão rápido? Foram os velhos que fizeram as barrigas nelas? Que magia era essa?
Minha cabeça rodava e percebi que meus companheiros também estavam atônitos, mas o pajé, altivo, gritou: “Não foi um homem o que as tocou, nem daqui, nem de fora”.
Continuava sem entender o que estava acontecendo. Olhei em direção ao grupo de mulheres e muitas choravam, a minha esposa também.
Um dos caçadores urrou ao ter com sua esposa e constatar a avantajada barriga. Tentou agredir um dos idosos, mas o cacique segurou-lhe mão e o repreendeu com vigor: “Vocês não perceberam o que aconteceu? Foi o boto!”
Finalmente reparei nos ventres enormes das índias, elas pareciam próximas de parir. Meus olhos pegaram fogo quando abaixei o olhar para verificar o estado de minha esposa.
As mulheres passaram a falar ao mesmo tempo, as vozes lembravam o grasnar das aves até que a voz de minha esposa se sobressaiu, todas calaram e, trêmula e nervosa, tentava explicar o que acontecera: “No mesmo dia em que vocês partiram, logo após recolher-me recebi a visita de um homem de pele rosada. Ele sorria e balbuciava algo como ki-ki-ki. Perdi os sentidos e quando acordei minha barriga já estava grande. Com as outras também foi assim. Elas poderão confirmar.” As demais esposas balançavam a cabeça concordando e algumas repetiam “foi o boto, foi o boto, foi o boto, foi o boto”.
Estava enfurecido! Batia meus pés no chão! Andava em círculos e meus companheiros repetiam meus gestos. A raiva tomava conta de todos e tanto o cacique como o pajé tentavam, em vão, nos consolar e acalmar, foi quando alguém gritou: “vamos pegar o boto! Vamos trazê-lo até aqui e vingar nossa honra!”
Depositamos os animais que caçamos no chão e corremos em direção ao rio. Ainda ouvi o cacique e o pajé reclamando que não devíamos fazer isso. Alguns idosos também protestavam, mas os ignoramos.
Desenrolamos nossas redes de pesca das árvores, dividimo-nos em cinco botes e remamos rio adentro. Pescaríamos o boto!
Depois de algumas horas remando avistamos um boto que saltava e rodopiava no ar caindo com estardalhaço na água. Sua risada soava alta, ki-ki-ki e nos irritava ainda mais. Atirei uma rede lança e ele facilmente se desviou, remávamos com força e o cansaço dos três dias na mata era superado pelo ódio.
Com muito esforço conseguimos formar um círculo com os botes e o cercamos. As redes foram atiradas e ele ficou preso a uma delas. Dois homens saltaram nas escuras águas e o abraçaram. Ele foi içado para um dos botes. Pareceu-me fácil demais captura-lo. Olhei para sua face. A boca escancarava um sorriso, mas seu olhar era distante e triste.
Remamos de volta para a aldeia e todos nos aguardavam às margens do rio, inclusive nossas esposas. O cacique e o pajé, como sempre, se colocavam à frente da tribo.
Descemos dos botes e ajudei meus companheiros a retirar o boto, desvencilhando-o da rede e carregando-o com cuidado. Para nossa surpresa ele não se debatia.
O cacique correu até nós e falou em tom de súplica: “não o machuquem! Devolvam-no às águas!”
Não obedecemos e continuamos, em silêncio, nossa marcha por sobre a lama até que chegamos à terra mais firme na beira do rio. Nem mesmo o pranto das mulheres perturbava nossa resignação. Queríamos mata-lo juntos e no centro da aldeia, em seguida o penduraríamos em uma árvore para que servisse de exemplo para outros de sua espécie.
Antes que pudéssemos deitá-lo no chão, o boto saltou de nossos braços e antes de tocar o solo se transformou num homem.
Sua pele rosada e lisa evidenciava ainda mais os músculos do tórax e braços. Mesmo forte, deixou-se conduzir por nós. Ele sorria, mas o olhar melancólico era o mesmo que encarei no bote. Assustados, não tentamos agredi-lo, mas ainda assim o cacique e o pajé se colocaram à frente dele protegendo-o. O pajé gritou: “Ninguém toca nele”. Os outros idosos da tribo se juntaram a eles oferecendo segurança ao homem cor-de-rosa.
O boto gargalhou, ki-ki-ki, e, afastando delicadamente os velhos que o protegiam, encarou cada um de nós, voltou-se para as mulheres e elas pararam de chorar. E começou a falar para toda a tribo: “Os ventres dessas índias abrigam meus filhos. Se me matarem, nascerão órfãos de pai. E o que farão com esses curumins, filhos de boto? Irão mata-los também?”
Protestei: “Filhos do mal não merecem viver!”
Ele olhou no fundo de meus olhos e disse: “Iúna, Rio Escuro!”, ele sabia meu nome! E prosseguiu: “Você sabe por que sua mãe lhe deu esse nome? Por minha causa!” Conte-lhe a verdade cacique!”
Mas foi o pajé quem, mais uma vez, abriu a boca e tagarelou: “Você é filho do boto! Sua mãe teve um filho dele e é você, Iúna, Rio Escuro!”
Pensei em bater no pajé, no cacique e no boto, mas, como que antevendo minha reação, minha mulher, que já estava ao meu lado, segurou meu braço e o apertou contendo-me.
Finalmente o cacique se voltou para nós, caçadores, e iniciou um discurso: “Há muito tempo que convivemos em paz com os botos. Eles são seres protegidos de nossos deuses e os respeitamos. Os filhos não são dos homens ou dos botos, são da natureza. Quando as mulheres dão à luz, saem humanos, mas à noite os botos veem até nós reclamar aqueles que são semelhantes e nos apontam quais serão peixes e quais se manterão como um de nós. Você Iúna, em breve estará na água, seguirá seu pai e fará filhos em nossa tribo ou em outra. Mate o boto e matará seu pai”.
As lágrimas corriam de meus olhos.
Nesse momento, o homem-boto me encarava com ternura, a melancolia deixara seu olhar. Tocou meu rosto e sem falar mais nada, virou-se e caminhou em direção ao rio. Nenhum de nós o impediu. Ele entrou na água e logo o avistamos saltando e rindo, ki-ki-ki. Voltamos silenciosos para a aldeia.
No dia seguinte, aos primeiros raios de sol, minha esposa pariu uma linda indiazinha que recebeu o nome de Iraê, Gosto de Mel. Naquela noite poderia ser reclamada pelo boto. Ele não nos visitou. Passei o dia aliviado, apesar de não ser minha filha, Iraê, era, na verdade minha irmã, mas não queria perde-la para o rio.
Quando sai da oca vi alguns de meus companheiros com o semblante contraído e triste, percebi que todas as mulheres também haviam parido, mas não traziam seus rebentos no colo.
Já haviam passado algumas luas desde que Iarê nascera. A noite chegou e fui dormir mais cedo que o habitual. Sentia-me cansado. Logo após encostar a cabeça no chão, caí no sono. Acordei de madrugada. Foi o calor que me despertara, estava encharcado de suor. Ao meu lado minha mulher e Iraê dormiam em sono profundo.

De um pulo, fiquei em pé e bebi água, mas a sede insistente e o corpo quente e molhado me diziam para ir até o rio. Deixei a oca para trás e quanto mais me aproximava do rio, o suor e a sede amainavam. Ao avistá-lo, senti um enorme impulso de atirar-me à água. Sem pensar, corri, invadi as águas escuras e, com ardor, nadava me afastando do leito do rio. Meu corpo, mente e coração eram preenchidos por uma calma e tranquilidade que nunca havia experimentado. Senti-me feliz. Muito feliz! Saltei, rodopiei no ar e ri: ki-ki-ki. Há alguns metros de mim, meu pai fez o mesmo. Seguimos nadando juntos.

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