sexta-feira, 22 de abril de 2016

PARA QUE A FILHA DO SEU BENTO SAIBA QUE É MEU BEM-QUERER - Crônica de Vera Ione Molina Silva (Uruguaiana, RS)

PARA QUE A FILHA DO SEU BENTO SAIBA QUE É MEU BEM-QUERER

Na composição “Guri”, de João Batista Machado, o “eu lírico” expressa: “Hei de ter uma tabuada, e o meu livro Queres ler, vou aprender a fazer contas, e algum bilhete escrever/ pra que a filha de seu Bento saiba, que ela é meu bem querer. E se não for por escrito, eu não me animo a dizer”.
Essa composição fala de amor homem-mulher, amor à família e à querência e de incapacidade de comunicação. Por que o “poeta” não pode se comunicar? Porque é uma criança, tanto que almeja uma cartilha e uma tabuada para “aprender a fazer contas e algum bilhete escrever”. O que nos toca nessa canção é a singeleza de sua letra, com a qual nos identificamos por já termos vivenciado esse sentimento, ou por vermos nossos filhos e alunos tentando se comunicar timidamente quando solicitados a dar opinião.
Em 1958, a Unesco definia como alfabetizada uma pessoa capaz de ler ou escrever um enunciado simples, relacionado a sua vida diária. Vinte anos depois, a mesma instituição recomendava o uso do conceito de “alfabetismo funcional”. “É considerada alfabetizada funcional a pessoa capaz de utilizar a leitura e escrita para fazer frente às demandas de seu contexto social e de usar essas habilidades para continuar aprendendo e se desenvolvendo ao longo da vida”.
Veja bem o leitor, esse é um primeiro passo, é, por assim dizer, ter condições de ir ao bolicho e saber quanto deve receber de troco. Mas, segundo a Unesco, em todo o mundo, a modernização das sociedades, o desenvolvimento tecnológico, a ampliação da participação social e política colocam necessidades crescentes, relativas às habilidades de leitura e escrita. A questão não é mais apenas saber se as pessoas conseguem ou não ler e escrever, mas também o que elas são capazes de fazer com essas habilidades. Ou seja, não adianta “algum bilhete escrever” e não atingir seu objetivo, ou porque não foi claro ao se expressar, ou porque o destinatário não tinha ferramentas para decifrá-lo. Isto é, “a filha do seu Bento” leu, mas não soube interpretar o que estava escrito, pois lhe faltava vocabulário, ou a capacidade de compreensão de um texto. Ainda que ela tivesse frequentado a escola, ela poderia estar no grupo do “alfabetismo nível básico”, capaz de localizar informações em textos curtos ou médios. E se o Guri resolvesse escrever uma carta mais pesquisada, digamos que ele não fosse preguiçoso, pegasse um dicionário, lesse uns poemas dos nossos compositores da Califórnia da Canção Nativa, por exemplo, e se metesse a usar figuras de linguagem, ou usar elipses e entrelinhas? Hoje, além da preocupação com o analfabetismo, problema que ainda persiste nos países mais pobres e também no Brasil, existe a preocupação com os usos efetivos da leitura e escrita na vida social. Na década de 90, muitos países desenvolvidos começaram a realizar pesquisas amostrais para verificar de forma direta, por meio da aplicação de testes, os níveis de habilidades de leitura e escrita da população adulta. Nesses estudos, o foco não é o analfabetismo, mas a insuficiência das habilidades de leitura e escrita da população alfabetizada. A dicotomia analfabeto x alfabetizado dá lugar à determinação e apuração de níveis de habilidade de leitura e escrita. Bem, neste ponto, como somos entusiastas das mulheres da Fronteira, atribuímos a elas uma inteligência lingüística superior, que tem origem na sua necessidade de se expressar em dois idiomas (português e espanhol), por isso acreditamos que a filha do seu Bento, mesmo que não pudesse frequentar a escola por muitos anos, por ter tido necessidade de ajudar na lida do bolicho, tenha se interessado por leitura, começando com o conterrâneo Colmar Duarte, que passou lá para comprar suprimentos para a estância e deixou um livro pra guria, ela gostou e continuou com Aparício Silva Rillo, chegou ao Tabajara Ruas e decidiu partir para outros autores brasileiros importantes, de literatura latino-americana e, estimulada pelo amor do Guri, tenha começado a ler poesia, autores internacionais e se transformado numa mulher que faz parte do grupo de “Alfabetismo Nível Pleno”, isto é, que localiza mais de um item de informação em textos mais longos, compara informação contida em diferentes textos, estabelece relações entre as informações (causa/efeito, regra geral/caso, opinião/fato), reconhece a informação textual mesmo que contradiga o senso comum. (Não inventa coisas que o texto não diz, afirmando que o autor devia estar pensando isso). E aí sim, o romance se transformou em uma troca de correspondências deliciosas, pois o guri se animou a dizer tudo o que queria e sentia e ela, boa leitora, apaixonou-se perdidamente e vive até hoje com ele, pois duas pessoas que têm sobre o quê conversar podem viver uma vida inteira juntas sem se entediarem e sem andar por aí fazendo chismes e colocando má intenção nos posts dos outros e, para não aborrecer o leitor, contam historinhas ilustrativas que poderiam ter acontecido em qualquer lugar do mundo.
Fazer chisme – criar confusão, falar alto
Bolicho – pequeno armazém ou mercado.

Inspirado na música Guri, de João Machado (letra) e Julio Machado (música)

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