PARA
QUE A FILHA DO SEU BENTO SAIBA QUE É MEU BEM-QUERER
Na
composição “Guri”, de João Batista Machado, o “eu lírico” expressa: “Hei de ter
uma tabuada, e o meu livro Queres ler, vou aprender a fazer contas, e algum
bilhete escrever/ pra que a filha de seu Bento saiba, que ela é meu bem querer.
E se não for por escrito, eu não me animo a dizer”.
Essa
composição fala de amor homem-mulher, amor à família e à querência e de
incapacidade de comunicação. Por que o “poeta” não pode se comunicar? Porque é
uma criança, tanto que almeja uma cartilha e uma tabuada para “aprender a fazer
contas e algum bilhete escrever”. O que nos toca nessa canção é a singeleza de
sua letra, com a qual nos identificamos por já termos vivenciado esse
sentimento, ou por vermos nossos filhos e alunos tentando se comunicar
timidamente quando solicitados a dar opinião.
Em
1958, a Unesco definia como alfabetizada uma pessoa capaz de ler ou escrever um
enunciado simples, relacionado a sua vida diária. Vinte anos depois, a mesma
instituição recomendava o uso do conceito de “alfabetismo funcional”. “É
considerada alfabetizada funcional a pessoa capaz de utilizar a leitura e
escrita para fazer frente às demandas de seu contexto social e de usar essas
habilidades para continuar aprendendo e se desenvolvendo ao longo da vida”.
Veja
bem o leitor, esse é um primeiro passo, é, por assim dizer, ter condições de ir
ao bolicho e saber quanto deve receber de troco. Mas, segundo a Unesco, em todo
o mundo, a modernização das sociedades, o desenvolvimento tecnológico, a
ampliação da participação social e política colocam necessidades crescentes,
relativas às habilidades de leitura e escrita. A questão não é mais apenas
saber se as pessoas conseguem ou não ler e escrever, mas também o que elas são
capazes de fazer com essas habilidades. Ou seja, não adianta “algum bilhete
escrever” e não atingir seu objetivo, ou porque não foi claro ao se expressar,
ou porque o destinatário não tinha ferramentas para decifrá-lo. Isto é, “a
filha do seu Bento” leu, mas não soube interpretar o que estava escrito, pois
lhe faltava vocabulário, ou a capacidade de compreensão de um texto. Ainda que
ela tivesse frequentado a escola, ela poderia estar no grupo do “alfabetismo
nível básico”, capaz de localizar informações em textos curtos ou médios. E se
o Guri resolvesse escrever uma carta mais pesquisada, digamos que ele não fosse
preguiçoso, pegasse um dicionário, lesse uns poemas dos nossos compositores da
Califórnia da Canção Nativa, por exemplo, e se metesse a usar figuras de
linguagem, ou usar elipses e entrelinhas? Hoje, além da preocupação com o
analfabetismo, problema que ainda persiste nos países mais pobres e também no
Brasil, existe a preocupação com os usos efetivos da leitura e escrita na vida
social. Na década de 90, muitos países desenvolvidos começaram a realizar
pesquisas amostrais para verificar de forma direta, por meio da aplicação de
testes, os níveis de habilidades de leitura e escrita da população adulta.
Nesses estudos, o foco não é o analfabetismo, mas a insuficiência das
habilidades de leitura e escrita da população alfabetizada. A dicotomia
analfabeto x alfabetizado dá lugar à determinação e apuração de níveis de
habilidade de leitura e escrita. Bem, neste ponto, como somos entusiastas das
mulheres da Fronteira, atribuímos a elas uma inteligência lingüística superior,
que tem origem na sua necessidade de se expressar em dois idiomas (português e
espanhol), por isso acreditamos que a filha do seu Bento, mesmo que não pudesse
frequentar a escola por muitos anos, por ter tido necessidade de ajudar na lida
do bolicho, tenha se interessado por leitura, começando com o conterrâneo
Colmar Duarte, que passou lá para comprar suprimentos para a estância e deixou
um livro pra guria, ela gostou e continuou com Aparício Silva Rillo, chegou ao
Tabajara Ruas e decidiu partir para outros autores brasileiros importantes, de
literatura latino-americana e, estimulada pelo amor do Guri, tenha começado a
ler poesia, autores internacionais e se transformado numa mulher que faz parte
do grupo de “Alfabetismo Nível Pleno”, isto é, que localiza mais de um item de
informação em textos mais longos, compara informação contida em diferentes
textos, estabelece relações entre as informações (causa/efeito, regra
geral/caso, opinião/fato), reconhece a informação textual mesmo que contradiga
o senso comum. (Não inventa coisas que o texto não diz, afirmando que o autor
devia estar pensando isso). E aí sim, o romance se transformou em uma troca de
correspondências deliciosas, pois o guri se animou a dizer tudo o que queria e
sentia e ela, boa leitora, apaixonou-se perdidamente e vive até hoje com ele,
pois duas pessoas que têm sobre o quê conversar podem viver uma vida inteira
juntas sem se entediarem e sem andar por aí fazendo chismes e colocando má
intenção nos posts dos outros e, para não aborrecer o leitor, contam
historinhas ilustrativas que poderiam ter acontecido em qualquer lugar do
mundo.
Fazer
chisme – criar confusão, falar alto
Bolicho
– pequeno armazém ou mercado.
Inspirado
na música Guri, de João Machado (letra) e Julio Machado (música)
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